SPUTNIK V, O CASO GEOPOLÍTICO DE SOFT LAW COM SOFT POWER: O QUE FALTOU PARA O BRASIL FOI POLÍTICA

SPUTNIK V, O CASO GEOPOLÍTICO DE SOFT LAW COM SOFT POWER: O QUE FALTOU PARA O BRASIL FOI POLÍTICA[1]


Há uma disputa de fundo na aprovação da vacina Sputnik V que é um conflito regulatório ou melhor, é uma ausência de convergência regulatória. Uma implicação de soft law com soft power.[2] Explica-se.

Passa-se a perceber isso quando da aprovação do uso emergencial das vacinas Oxford/AstraZeneca e CoronaVac na sessão pública de 17/01/2021 na ANVISA, em que se vê que há uma aceitação quase automática em relação à Oxford/AstraZeneca e uma percepção mais crítica à CoronaVac.

Mas, o que isso quer dizer e qual a relação do tipo de abordagem na aprovação da Oxford/AstraZeneca e CoronaVac? E o que tem a ver com soft law e soft power?

A ANVISA é um agência reguladora em saúde, e em termos vacinais, fixa normas regulatórias e as aplica em nível fiscalizatório para aprovar ou não determinada tecnologia de vacinal; e também tem em suas mãos, o que hoje vem ganhando a atenção dos estudos jurídicos e sociológicos, uma espécie de soft law que produz por sua vez um espécie soft power.

A construção da noção de soft law vem ocorrendo há décadas centrando-se no reconhecimento de normas sociais que não nos limites do hard law que estas seriam as leis clássicas de caráter coercitivo forte, nesse sentido Dinah L. Shelton:

Soft law é um tipo de norma social e não legal. Embora não haja uma definição aceita de “soft law”, esta expressão geralmente se refere a qualquer instrumento internacional escrito, que não seja um tratado, contendo princípios, normas, padrões ou outras declarações de comportamento esperado. Soft law “expressa uma preferência e não uma obrigação de que o estado deve agir, ou deve abster-se de agir, de uma maneira especificada.” (Gold 1996: 301). Essa “preferência expressa” por determinado comportamento visa alcançar a cooperação funcional entre os estados para atingir as metas internacionais (Lichtenstein 2001: 1433). [tradução livre][3]

Ao passo que na adoção de marcos regulatórios de determinadas correntes globais (no Brasil adotando principalmente a Europeia e a Norte-americana), aqui chamado de soft law, essa condição produz uma espécie de soft power decorrente das adoções dessas metodologias e tecnologias de validação, nos termos inaugurados por Joseph Nye, nas palavras de Luís Lobo-Fernandes:

“Para Nye, o conceito de soft power – que elabora no prefácio do livro Soft Power: The Means to Success in World Politics (2004) – é definido fundamentalmente como uma capacidade persuasiva de poder, ou seja, a capacidade de um Estado obter algo através de um efeito de atracção e não por coerção ou pagamento, e assenta fundamentalmente no potencial atractivo da universalidade da cultura de um país, dos valores políticos, e das suas políticas.”[4]

Esses termos regulatórios da ANVISA (soft law) são basicamente metodologias de como validar ou não determinadas tecnologias, o que não se atenta é que a construção dessa soft law é lenta e de bases referenciais Europeias e Norte-americanas há décadas [5]. O que isso quer dizer é que a base metodológica de verificação que é utilizada pela ANVISA para validação ou não de uma tecnologia passa pelo crivo desses métodos que são aplicados na Europa, nos Estados Unidos, e por convergência aqui no Brasil.

O que isso implica então? Implica num amplo soft power decisório sobre determinadas tecnologias que estarão ou não à disposição dos mercados e poderes públicos vinculados a essas metodologias.

E aqui nasce a diferença entre as vacinas Sputnik V e CoronaVac.

A vacina CoronaVac foi desenvolvida em uma base metodológica diferente da Europeia e Norte-Americana em termos de verificação e validação, baseado em métodos adotados na China. No entanto, os responsáveis pela CoronaVac se preocuparam em fazer uma convergência entre as duas fontes metodológicas, uma espécie de diálogo, ou melhor, uma regulação comparada que permitisse validar sua tecnologia nos padrões regulatórios Europeus e Norte-americanos.

Na sessão de aprovação do uso emergencial na ANVISA sobre a CoronaVac, em 17/01/2021, é exatamente o tempo que se perde em determinar a equiparação e convergência de metodologias, sua comparação, no que os responsáveis pela vacina CoronaVac colaboraram.

Ontem (26/04/2021), na sessão de aprovação da importação da vacina Sputnik V, a discussão se deu no mesmo patamar. Mas a razão maior foi de não cooperação e compartilhamento metodológicos. As tentativas da ANVISA em obter informações mais assertivas para as efetivas comparabilidades foram frustradas por conta do não fornecimento por parte dos responsáveis pela vacina das explicações necessárias ou de informações de outras agências ou produtores no mundo, por conta da reserva da confidencialidade.

O que se vê é então a ANVISA em um problema regulatório que levaria ela a um dilema: ou aprova negando seus próprios regulamentos ou nega aprovando seus próprios regulamentos. Regulamentos esses construídos em décadas sobre bases europeias e norte americanas de regulação. O resultado já se sabe.

Havia uma terceira via que foi a adotada na aprovação da CoronaVac que é a convergência de marcos regulatórios e comparabilidade, mas aqui os produtores da CoronaVac desempenharam papel central, por um interesse mesmo de que a convergência regulatória permitiria a eles acesso mais rápido a mercados.

No Brasil, a aposta devia ser por essa terceira via, mas daí se precisaria ter liderança política para articular nesse nível e as informações pudessem ser compartilhadas.

Da parte da Rússia, parece ser uma aposta real de soft law com implicações de soft power, forçando outros caminhos políticos como por exemplo o Brasil dispensasse uma análise regulatória nesses padrões e assumisse de cima para baixo a posição regulatória da Rússia que no mundo ocidental ainda é desconhecido pela tradição tecnológica estudada nas agências, como se viu ontem na ANVISA.

Resumindo: é como se todo o mundo ocidental sempre dialogasse através do dólar, mas que em determinado momento este mundo ocidental precisou conversar em renminbi (moeda chinesa) e rublo russo, sendo que a China se propôs a explicar como sua moeda dialogava perfeitamente com o dólar e seus mercados, enquanto que a Rússia apostou na não explicação e sim na dependência pura pela escassez.

A vacina é um clássico caso geopolítico de alta tecnologia, mas com requinte neste texto dessas novas teorias, soft law e soft power; e o que faltou ao Brasil nisso tudo foi política.

 

Por Fulvio Machado Faria



[1]   Nos últimos anos, diante das minhas pesquisas acadêmicas, me deparei com os estudos de soft law e soft power, e por outro lado venho acompanhando as decisões técnicas da ANVISA no intuito de melhorar minha experiência sobre assuntos regulatórios. Daí que desde 17/01/2021 venho intuindo uma certa relação entre os três temas, dos quais apresento nas linhas a seguir.

[2]   Se a construção de normas jurídicas é de algum modo uma forma de distribuição do poder, uma lei mais branda (soft law) é em certa medida uma mediação e distribuição de poderes brandos (soft power), que, no entanto, tem relevância.

[3]   SHELTON, Dinah L. Soft Law. In: HANDBOOK OF INTERNATIONAL LAW, Routledge Press, 2008; GWU Legal Studies Research Paper No. 322; GWU Law School Public Law Research Paper No. 322. p. 3.

[4]   LOBO-FERNANDES, Luís. Soft Power: o Jogo de Atracção Cultural e as Vantagens da Cooperação. In: Revista Relações Internacionais, junho 2005, trimestral, Portugal. p. 169.

[5]   Vide nesse sentido as tentativas harmonização regulatória: Conferencia Internacional sobre Armonización (‎ICH)‎: nuevos desarrollos en calidad. Información OMS de medicamentos 2007; 21(‎1)‎ : 3-7 https://apps.who.int/iris/handle/10665/74086


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